quarta-feira, 5 de março de 2014

TEXTO 4: O professor e o ato de ensinar

Autor: Alexandro Muhlstedt (2013) 
Pedagogo - Colégio Estadual do Paraná


Onde quer que haja mulheres e homens há sempre o que fazer,
há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender.
(Paulo Freire)



Todos eles traziam sacolas, que pareciam muito pesadas. Amarraram bem seus cavalos e um deles adiantou- se em direção a uma rocha e gritou: “Abre-te, cérebro.
(Arnaldo Antunes)



Ensinar não é a mesma coisa que fazer aprender, ainda que, muitas vezes, para fazer o aluno aprender, o professor tenha que ensinar.
(Bernard Charlot)




Ensinar é atividade tão antiga quanto a própria vida humana. No entanto, ensinar sistematicamente numa instituição de ensino é algo recente na história da humanidade, sendo esta função do professor, entendido como o profissional do ensino.
A atividade de ensinar ligada à profissão de professor só apareceu no século XVIII, nas lutas por democratização, empreendidas pela revolução burguesa. ARANHA (2006, p. 172) aponta que “contra os privilégios hereditários da nobreza, os burgueses defendiam os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade”. A revolução burguesa representa a tomada pelo Estado burguês à função de instrução pública como forma de legitimar seu poder, encontrando neste papel uma forma de coesão social, articulando seus interesses aos das classes subalternas. Nesse contexto, aparece a atividade profissional de professor.
A docência, como atividade de ensino e instrução, é um termo recente na Língua Portuguesa e refere-se ao trabalho dos professores. É uma atividade profissional especializada, ou seja, caracterizada como profissão (construção social) e produzida pelas ações dos docentes – sujeitos da própria história (construção pessoal). Para exercer a docência é necessário a formação profissional na qual o sujeito deverá adquirir os conhecimentos específicos e, a partir deles, construir saberes para realizar sua atividade em sala de aula, na escola. Esses conhecimentos, com densidade epistemológica, adquiridos em cursos de Licenciatura, constituem a formação inicial, e a partir deles, juntamente com a prática docente, na relação com outros profissionais e nos cursos de formação continuada, vão determinando os saberes pedagógicos e também elaborando quadros de dúvidas, de certezas, de perplexidades, de compromissos, de escolhas e de vontades.
Compreender o processo de formação do professor, bem como as suas ações no cotidiano escolar e suas relações com os alunos e demais professores, é tarefa que exige pesquisa, diálogo, observação e interação, pois o professor e sua ação docente “não nasce ontologicamente com a pessoa, nem depende de um despertar mágico ou de uma iluminação súbita da consciência para um compromisso até então ausente de um projeto de vida” (ROMÃO, 2001, p.64).
Entende-se, então, que a relação que se estabelece entre o sujeito e a profissão ocorre ao longo da vida produtiva, num processo contínuo, no qual ocorrem experiências estimulantes e motivadores junto com outras carregadas de tensão, conflitos e desânimo. Esse processo pessoal, que sofre as interferências dos demais participantes do cotidiano escolar, transforma o próprio sujeito. Essas vivências se constituem pelo diálogo com os outros e com a própria realidade, pois é “através de sua permanente ação transformadora da realidade objetiva, (que) os homens, simultaneamente, criam a história e se fazem seres históricos-sociais” (FREIRE, 1987, p. 92).
As condições de trabalho (exteriores ao sujeito e também internas) constituem a realidade profissional vivenciada pelo professor. As lutas para a melhoria dessas condições caracterizam, em certa medida, o comprometimento e o compromisso do sujeito com o seu trabalho e com o seu ambiente de trabalho. E a melhoria nessas condições reflete de forma positiva sobre a profissão e seu papel social.
Paulo Freire preocupou-se em discutir a educação brasileira e pensar meios de torná-la melhor mediante o compromisso e a participação de todos. Essa análise foi desenvolvida na perspectiva de uma educação libertadora, capaz de contribuir para que o aluno se torne sujeito de seu próprio desenvolvimento, diante da presença orientadora que tem o professor.
Para Freire, a educação é ato de amor e coragem, sustentada no diálogo, na discussão, no debate. E isso requer o olhar para os saberes dos homens e mulheres, já que não se ignora tudo, da mesma forma que não se domina tudo. Cabe realizar a compreensão de que a história é um processo de participação de todos, e neste sentido é na escola que se encontra mais um lugar privilegiado para o ensino e a aprendizagem. Local que deve ser constituído pela sua natureza e especificidade. Segundo ele, é necessário ainda que seja conferido ao homem o direito de dizer sua palavra, o que significa sua iniciação quanto a compreender-se e aos demais homens no mundo, e seu papel no processo de transformação. Compreender que o homem é um ser histórico e, portanto capaz de construir sua história participando ativamente com os outros no mundo.
Para Paulo Freire, “o papel do professor é ajudar o aluno a descobrirem que dentro das dificuldades há um momento de prazer, de alegria” (FREIRE, 2003, p. 52). Para tanto, torna-se prioritário a prática do diálogo em que ambos, educador e educando, através da realização de seus objetivos chegam ao acesso do saber historicamente elaborado pelo exercício cultural da humanidade.
Ainda de acordo com Paulo Freire, “o educador como um intelectual tem que intervir. Não pode ser um mero facilitador” (2003, p.177), o que traduz a exigência da formação docente para o exercício pleno de sua função pedagógica, enquanto articulador do processo ensino e aprendizagem.
O exercício da docência impõe ao educador a seriedade da sua formação, sendo que de acordo com Paulo Freire “a incompetência profissional desqualifica a autoridade do professor” (2007, p. 92).
Paulo Freire traz para a realidade escolar, o pensar educação. Permite o reencontro com a esperança de um trabalho comprometido, responsável. Possível, se emanado no coletivo escolar. Uma necessária compreensão de que a escola é lugar de gente, onde se faz amigos, nada de ser como a do tijolo que forma a parede, indiferente, frio, só. É essa escola que se deseja construir: humana, capaz de compreender os desafios de seu tempo, comprometida com as gerações futuras, que luta pelo melhor viver, que reconhece fatos e gestos, que une conhecimentos, que recorda e que se reinventa. Para Paulo Freire (2006, p. 111), uma escola em que “o direito de saber melhor o que já sabem, ao lado de outro direito, o de participar, de algum modo, da produção do saber ainda não existente”.
Ante a este ideal de trabalho docente, bem como uma meta, em essência e nas condições físicas e materiais, não se pode deixar de refletir que as grandes transformações pelas quais o mundo do trabalho vem passando estão mudando também as características do trabalho em educação. De modo geral, observa-se a massificação do ensino, a mercantilização, a expansão do ensino superior privado, a utilização das estratégias organizacionais voltadas para o lucro. Todos estes fatores favorecem a comercialização do ensino e são passíveis de serem vistos no contexto atual de educação.
Ao mesmo tempo, influenciam também o perfil do professor, que vem sendo rediscutido, na tentativa de atender a estas demandas. As características atribuídas ao professor acabam sendo delineadas pelo contexto socioeconômico e político e pela inserção de novas tecnologias.
Observa-se uma desvalorização da figura do professor, a perda de prestígio, de poder aquisitivo, de condições de vida e, sobretudo, de respeito e satisfação no exercício da profissão. Freitas (2007) mostra o triste e real cenário, onde o professor é considerado um “aulista”, não podendo, em grande parte, emitir juízo sobre seu trabalho na sala de aula.
Como consequência desse novo cenário a escola pode ser considerada um lugar de risco para a saúde. O excesso de trabalho tem sido produzido pela mudança na prática de ensino, com a incorporação de novas tecnologias que ajudam, mas, aceleram o ritmo de trabalho. Além das competências relacionadas à sua área de conhecimento específica e à sala de aula, o professor deve ter conhecimentos tecnológicos mínimos para preparar seu material didático, usando instrumentos cada vez mais sofisticados. Tornam-se frequentes as doenças psicossomáticas entre professores de todos os níveis e ambientes de trabalho. Gastrite, taquicardia, hipertensão, irritabilidade, insônia, depressão e síndrome do pânico estão entre os males mais diagnosticados (FREITAS, 2007). O estresse profissional se alimenta hoje de múltiplas fontes. A sala de aula, o relacionamento com os alunos, as cobranças excessivas, a falta de tempo, a competição, a contínua atualização tecnológica e da área de estudos dão origem a uma fadiga institucional que coloca a carreira como uma das mais estressantes e desgastantes (CODO, 1999; ESTEVE, 1999; FREITAS, 2007).
Estas constatações, evidentemente, não devem ser impeditivos para as buscas de transformações proferidas por Paulo Freire. Devem, sim, ser analisadas em seu conjunto e, uma vez que estão situadas em contextos plurais e dinâmicos, precisam ser entendidas como desafios a serem enfrentados pelos docentes, em sua coletividade. A própria atividade docente demanda a adoção de variadas atitudes, por vezes lançando mão de posturas criativas para fazer frente às situações práticas que implicam atividades interativas, entre professor e aluno, professor e profissionais da educação, familiares de alunos, etc. (TAVARES, 2001).
Algumas estratégias são possíveis para o desenvolvimento de compreensões mais apuradas da realidade escolar, bem como na forma dos professores se organizarem e se posicionarem ante a profissão que escolheram: o diálogo com a situação e entre os pares para o desvelamento de aspectos implícitos e nem sempre contemplados da realidade divergente, estimulando a criação de novos marcos de referencia; o autoconhecimento das características dos modos de ser professor, problematizando a própria prática e as atividades docentes; a reflexão como forma de encarar e responder aos problemas, em um processo de busca de soluções e a flexibilidade para diferentes formas de agir, nas distintas situações da realidade.
Essas estratégias se tornam práticas cotidianas quando o professor, ao posicionar-se de forma crítico-reflexiva, preocupa-se verdadeiramente com as consequências éticas e morais de suas ações na prática social, quando insere a escolarização diretamente na esfera política e vice-versa, concebe os alunos como agentes críticos, o conhecimento e torna problemático, o diálogo crítico e afirmativo e os argumentos, a favor de um mundo melhor para todas as pessoas. Nessa perspectiva de prática pedagógica, o professor considera a voz ativa dos alunos, cujos sentidos e significados de ser e estar no mundo, construídos historicamente, permeiam todas as suas ações no que se refere à sua aprendizagem, à escola e à sociedade.
Por isso, é necessário agir. Não uma ação solitária, ingênua, acrítica, e utilitarista, simplesmente. Mas agir de modo coletivo, evitando a inércia profissional, as queixas miúdas, o pensamento raso e as lamentações vazias. Agir com coerência, em prol de condições adequadas e de novas possibilidades de ensino. Agir para realmente constituir a sala de aula espaço de diálogo, ensino e aprendizagem. Agir para que as relações entre os professores se consolidem pedagogicamente. Para isso, um processo de formação continuada é fundamental, desde que envolva a teoria que mobiliza a prática e a socialização das experiências que avalia e transforma a prática, num processo de construção constante. Assim sendo, faz sentido, mesmo que não se tenha todas as respostas, envolver-se na tarefa de criar, coletivamente, formas de atuação na escola, numa superação da tentação de estar só.
E, uma vez definidos os caminhos da ação, o que é essencial para uma prática realmente crítica e reflexiva?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANHA, M L. de A. História da educação e da pedagogia: geral e Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006.
CODO, W. (Org.). Educação: carinho e trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
ESTEVE, J. M. O mal estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores. São Paulo: EDUSC. 1999.
FREIRE, P. Educação na cidade. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2000.
__________. Pedagogia do oprimido. 38 ed.; São Paulo: Paz e Terra, 1987.
__________, Conscientização: Teoria e pratica da libertação: Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3a ed.; São Paulo: Centauro, 2006.
__________, Educação e mudança. 30a ed.; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
__________,Pedagogia da Autonomia: saberes necessários a prática educativa. 35 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007. (Coleção Leitura)
FREITAS, M. E. A carne e os ossos do ofício acadêmico. O&S, v.14, n.42, Jul/Set, 2007, p.187-191.
ROMÃO, J. E. Compromisso do educador de jovens e adultos. In: GADOTTI, M.; ROMÃO, J. E. (Orgs.). Educação e jovens e adultos: teoria, prática e proposta. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 61-78.
TAVARES, J. Resiliência e educação. 2 ed. São Paulo: Ed. Cortez, 2001.


Para ampliar o debate, conheça um pouco mais sobre Paulo Freire:

(Clique no título a seguir)



PAULO FREIRE



QUESTIONAMENTOS IV
1. Atualmente, quais são os recursos necessários para ensinar bem e quais são os procedimentos profissionais valorizados pela escola?
2. O que se espera do professor que se dispõe a ensinar com competência, levando em consideração as características dos alunos?
3. Quais são as obrigações (deveres) dos professores prescritos na Lei? E quais são os seus direitos?
4. Qual a importância da relação entre os diferentes níveis da organização escolar (Conselho Escolar, Direção, Equipe Pedagógica)?
5. O que importa, de fato, na relação entre o professor e seus alunos? Quais valores e atitudes devem permear essa relação?
6. Quais as causas das “doenças” do Magistério? Como evitá-las?
7. Como se caracteriza o professor sem o devido compromisso com o ensino, com os alunos e com a escola? Quais as razões disso? Que características tem o posicionamento crítico-reflexivo do professor?

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