quarta-feira, 5 de março de 2014

TEXTO 3: O professor e a sua prática: do habitus ao conceito de profissionalidade

Autor: Alexandro Muhlstedt (2013) 
Pedagogo - Colégio Estadual do Paraná


Do diálogo entre o já adquirido e o que ora se adquire, e uma certa nuance do devir, surgem sincretismos que correspondem à emergência de uma nova dimensão do ser, não estática, nunca terminada, sempre sujeita a mudanças, a reconstruções identitárias.
(Ricardo Vieira)


A presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da Historia.
(Paulo Freire)


É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente.
Mulheres e homens se tornaram educáveis,
na medida em que se reconheceram inacabados.

(Paulo Freire)



É no contexto mundial da sociedade contemporânea, e também local, de lógica capitalista, com forte presença da ideologia neoliberal, que a escola pública de educação básica do Paraná está situada e onde configura-se o espaço de formação da identidade docente do professor. As questões econômicas, de mercado, entram na escola por meio de mecanismos que causam, entre outras coisas, problemas de repetência, evasão dos alunos e, ao professor, um desânimo e adoecimento físico e mental. E este quadro não pode servir de tônica única para a formação política do professor, visto que o fazer pedagógico do professor não pode ser deixado de lado, assim como a consciência política não pode ser desvinculada da ação do professor.
A consciência política alivia as culpabilizações emocionais individuais e coletivas e contribui para construir autoestima com a profissão, identificar-se com o fazer pedagógico docente e entender também os limites da ação profissional.
Como já foi mencionado, é por meio de sua atuação que o professor vai constituindo sua práxis e os saberes da experiência. Estes, como exercício da prática cotidiana da profissão, são fundados no trabalho e no conhecimento do meio. “São saberes que brotam da experiência e são por ela validados. Incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades, de saber fazer e de saber ser” (TARDIF, 1991. p. 220).
Dialogar com os saberes da experiência, que têm origem na prática cotidiana do professor em confronto com as condições de trabalho, se torna fundamental para compreender que eles "...não são saberes como os demais, eles são, ao contrário, formados de todos os demais, porém retraduzidos, 'polidos' e submetidos às certezas construídas na prática e no vivido" (TARDIF, 1991. p. 232).
O processo de construção dos saberes da prática não é automático. Dominar tais saberes não garante a competência técnica e política da ação docente. Uma das formas de compreender como esse processo se realiza é trabalhar com a categoria de habitus de Bourdieu. Tal categoria pode ser compreendida no contexto de trabalho do professor como disposições adquiridas na e para a prática real, e que permitem ao professor enfrentar os desafios imponderáveis da profissão, constituindo a condição básica para um novo profissionalismo.
Habitus é conceito capaz de conciliar a oposição aparente entre realidade exterior e as realidades individuais.
Pensar a relação entre indivíduo e sociedade, entre professor e escola, com base na categoria habitus implica afirmar que o individual, o pessoal e o subjetivo são simultaneamente sociais e coletivamente orquestrados. O habitus é uma subjetividade socializada (BOURDIEU, 1992, p. 101).
Analisar a ação docente, tendo como base e ferramenta a categoria habitus, propicia a compreensão da relação que se estabelece entre os condicionantes sociais exteriores (condições de trabalho do professor, por exemplo) e a subjetividade dos sujeitos (formas de proceder em sala de aula, por exemplo). Habitus não é fatalidade. Habitus é consequência de uma trajetória de vida que auxilia a pensar as características de um ser social (no caso, o professor) e que se materializa como um sistema de disposições ora consciente ora inconsciente de suas escolhas (no caso, a práxis docente). Por meio do conceito habitus entende-se “o processo de constituição das identidades sociais no mundo contemporâneo, uma vez que o habitus passa a ser o social incorporado” (SETTON, 2002, p. 33).
Bourdieu (2004, p. 134) assevera que o habitus é produto da inculcação exercida pelas condições objetivas de existência, e este ao ser incorporado através de um processo longo, é transformado em uma forma de ser, pensar e agir presente em cada indivíduo, oportunizando uma quebra entre individuo e sociedade, sendo o habitus o princípio não escolhido de tantas escolhas que desespera os nossos humanistas
As atividades que são desenvolvidas na escola, coordenadas pelo professor, criam o ser social. O meio utilizado são as estratégias educacionais que são movidas pelos habitus tanto do professor (com seus saberes adquiridos e incorporados na sua trajetória de vida) como dos alunos e esses vão sendo mobilizados durante todo o processo educacional.
Setton (2001, p.61) explica habitus como “uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem suas escolhas.” Assim, pode se compreender que o habitus profissional do professor é constituído antes mesmo de sua inserção no espaço escolar. Uma vez desenvolvendo sua práxis pedagógica e construindo seus saberes docentes, o professor pode questionar seu habitus, buscando compreender, por meio da reflexão, a sua própria ação. Com isso, construir novo habitus a partir de ações experienciadas na prática.
A partir da categoria habitus é possível compreender o sujeito no mundo. Nesta perspectiva, há uma tendência em reduzir a prática docente a uma prática individualizada. A crise que ocorre nas instituições sociais afeta sobremaneira o fazer pedagógico docente. Afinal, o processo de globalização acompanhado ao avanço tecnológico tem provocado alterações significativas na sociedade atual. O destaque é a individualização, a luta pelos direitos individuais e a busca pela afirmação da identidade.
Perceber o professor e desvelar sua ação docente no interior da escola é percebê-lo neste contexto altamente globalizador, na perspectiva de indivíduo e sujeito ativo no processo de seu trabalho. A finalidade da educação escolar na sociedade tecnológica, multimídia e globalizada, grosso modo, é trabalhar os conhecimentos científicos e tecnológicos, desenvolvendo aptidões para operá-los, revê-los e reconstruí-los. Inegável o papel do professor para conduzir de modo competente e coerente este processo. Ao analisar a prática educativa do professor, há que se levar em consideração os seus processos de formação e desenvolvimento profissional, haja vista que sua função docente abrange enorme quantidade de atribuições e atividades.
Enquanto prática social, a educação ocorre em inúmeras instituições da sociedade, mas é na escola, enquanto processo sistemático e intencional, que esta ocorre com destaque. E é justamente no trabalho do professor que este processo acontece. Assim, no trabalho com seus alunos, o professor assume uma responsabilidade que é pedagógica, ao mesmo tempo que é social e política.
A formação profissional do professor é construída, pois, por diversificadas experiências que compõem e fundamentam a prática pedagógica. Construir-se professor requer, desde a formação inicial, a constante reflexão do que se faz, como se faz e como deveria ser feito. Esse movimento de construir e reconstruir a prática pedagógica resulta no processo dialético que norteará a formação profissional
Nas atuais tendências investigativas sobre a docência, a constituição da profissionalidade do professor vem emergindo como uma temática relevante, que tem como referência os contextos e processos envolvidos na constituição do ser professor. Sacristán (1995, p. 65) entende a profissionalidade como, “[...] a afirmação do que é específico na ação docente, isto é, o conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a especificidade de ser professor”. De acordo com Ambrosetti e Almeida (1999) o conceito de profissionalidade sugere uma nova perspectiva para a docência visando compreendê-la, em sua complexidade, como uma construção que se dá nas relações entre os indivíduos e os espaços sociais nos quais exercem sua atividade profissional. Na perspectiva da profissionalidade os professores são compreendidos como atores sociais que, agindo num espaço institucional dado, constroem nessa atividade sua vida e sua profissão. Como destacam Tardif e Lessard (2005, p. 38), os professores são atores que “[...] dão sentido e significado aos seus atos, e vivenciam sua função como uma experiência pessoal, construindo conhecimentos e uma cultura própria da profissão”. Nesse sentido, as dimensões do social e do psicológico se integram nas formas de viver o trabalho e de se identificar com a profissão.
Para atender os requisitos da profissionalidade docente, Contreras (2002) apresenta três dimensões constitutivas deste conceito: 1. a obrigação moral por ser o ensino uma atividade que supõe um compromisso de caráter moral para quem o realiza; 2. o compromisso com a comunidade na qual os professores devem realizar a prática profissional, pois educação não é um problema da vida privada do professor, mas uma ocupação socialmente encomendada e responsabilizada publicamente e 3. a competência profissional para o cumprimento da obrigação moral e o compromisso com a comunidade, que combinam habilidades, princípios e consciência do sentido e das consequências das práticas pedagógicas.
Para Contreras (2002), ainda, a profissionalidade se refere às qualidades da prática profissional dos professores em função das exigências do trabalho educativo. Nesta perspectiva, falar de profissionalidade significa, “[...] não só descrever o desempenho do trabalho de ensinar, mas também expressar valores e pretensões que se deseja alcançar e desenvolver nesta profissão”.
Entendendo, então, a profissionalidade como um processo de constituição e identificação profissional, é desenvolvido pelos professores ao longo de sua trajetória, nos diferentes espaços de socialização, desde a escolarização básica, passando pela formação profissional e, principalmente, na organização escolar, onde os professores exercem, aprendem e desenvolvem a profissão. Esse processo envolve uma relação dialética entre as condições sociais e institucionais colocadas ao trabalho docente e as formas de viver e praticar a docência, desenvolvidas pelos professores individual e coletivamente, que são constituídas e constituem o contexto escolar.
A formação docente (inicial e continuada) apresenta assim duas facetas: pode ser considerada como espaço de aquisição e de reforço do habitus de ensinar (nos termos propostos por Bourdieu) e como espaço de construção de uma “identidade profissional”, que não somente opõe-se à “identidade vocacional” mas propõe-se a superá-la. E é aí que reside o processo de profissionalidade docente, quiça torne-se o principal instrumento de conquista de um maior prestígio social da profissão, de melhores condições de trabalho e remuneração, de desenvolvimento de uma consciência crítica, de engajamento nas lutas do magistério e na transformação social.
Discutir a profissionalidade docente é ir para além da formação pedagógica, é trazer também, como objeto de estudo, os caminhos que o próprio professor busca para alcançar seu desenvolvimento profissional. Nessa perspectiva, os saberes docentes têm muito a contribuir. Segundo Tardif (2002), existem diferentes formas de se analisar os saberes construídos pelos professores, referenciados pelo autor com base em três dimensões: social, temporal e plural. Os saberes sociais são adquiridos na relação com o outro (aluno, pares, instituição, sociedade), no contexto de uma socialização profissional; os saberes temporais ocorrem ao longo da vida do professor, mesmo antes que inicie sua carreira docente; e finalmente, os saberes plurais, que emanam de várias fontes: “O saber dos professores é plural, compósito, heterogêneo, porque envolve, no próprio exercício do trabalho, conhecimentos e um saber-fazer bastante diversos, provenientes de fontes variadas e, provavelmente, de natureza diferente.” (TARDIF, 2002, p. 18).
Há que considerar que na elaboração desses saberes a experiência como aluno é parte constituinte da identidade docente, é um tipo de habitus que poderia explicar determinadas escolhas e comportamentos na prática pedagógica. Afinal, a vivência como aluno também traz raízes tradicionalistas sobre a forma de ensinar, a concepção de aluno, a visão da educação e o papel da escola. Tardif (2002, p. 74-75) reforça que essa vivência pode levar a um “[...] papel institucionalizado do professor [...]”, que pode expressar dificuldades em acatar o novo, por manter “[...] esquemas de ação e interpretação implícitos, instáveis e resistentes através do tempo.” Essa cristalização de ideias e comportamentos poderia ser um dos aspectos que explicaria as dificuldades de alguns professores em analisar, criticamente, a sua atuação docente ou mudar comportamentos.
Por fim, a atividade de ensino é um processo complexo que envolve os mais diferentes saberes: pedagógicos, sociais, culturais, afetivos, políticos, históricos, etc. É na atuação profissional que o professor aprende e coloca em ação os saberes de que dispõe. Os processos formativos não estão somente nos cursos de formação inicial e continuada, mas nas mais diferenciadas vivências pelas quais passa o professor. O cotidiano da sala de aula, por exemplo, pode ser um “lócus” de construção de saberes, pois eles fornecem elementos que auxiliam na resolução de questões específicas da sala de aula, sendo que as situações reais vividas em sala podem ser geradoras de saberes docentes. E é essa clarificação do “ser docente” e dos “saberes docentes” que compõem, também, o processo de profissionalidade permeado por um processo reflexivo e crítico.
A ideia de profissionalidade repõe, então, a centralidade dos professores como atores da prática educativa. Que importância tem, então, essa centralidade no ato de ensinar, de concretizar o currículo na sala de aula?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMBROSETTI, N. B.; ALMEIDA, P. C. A. de. Profissionalidade docente: uma análise a partir das relações constituintes entre os professores e a escola. In: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 90, n. 226, p. 592-608, set./dez. 2009.
BOURDIEU, P. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.
CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.
SACRISTÁN, J. G. Consciência e ação sobre a prática como libertação In: NÓVOA, A. (org.). Profissão professor. 2. ed. Portugal: Porto, 1995. p. 63-92.
SETTON, M. da G. J. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, n. 20. maio/jun./jul./ago. de 2002.
TARDIF, M. . Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.
______; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

Para ampliar o debate, leia também o texto sobre Pierre Bourdieu:

(Clique no título a seguir)


PIERRE BOURDIEU


QUESTIONAMENTOS III
  1. Atualmente, quais são as condições de trabalho do professor na escola pública estadual? Quais seriam as condições ideais?
  2. Quais são os elementos que demonstram desprestígio social da profissão docente? Quais são as características dessa desvalorização?
  3. O que o professor aprende ao agir no cotidiano escolar? Como ele constrói a sua prática? Quais são as formas mais comuns para se identificar como professor?
  4. O que caracteriza o “bom” professor?
  5. Quais são as formas de atualização e reflexão que ocorrem como formação continuada aos professores do Paraná? Qual a validade dessa formação para a prática cotidiana?

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